Post publicado em 3 de novembro de 2008
Ontem, dia de finados. O congestionamento fica incalculável pelas ruas nas quais preciso trafegar. A resposta não sobe estranha à razão. Moro no bairro onde se concentram estranhamente quatro cemitérios, o maior do estado, um religioso, um israelita e outro com a pompa de ter sido o primeiro vertical do país. Policiamento ostensivo é reforçado. Camelôs e flores dão brilhos e cores à la Joãozinho Trinta. Mas o dia tem um ar grave pra se respirar diante desses cenários. Prefiro sair daqui, buscar novos ares fora do bairro. Caminhando, vejo no chão um desenho que parte o lúgubre ao meio. Um desenho de amarelinha, a brincadeira que não se vê mais nos pés de ninguém. Sorrio, mas prossigo. Entro no ônibus. Encontro conhecidos até lá. Aceno educadamente. Assento. Viajo. Salto. Caminho. Encontro amigos. Encontro abraços. Encontro uma notícia triste. Alguém que conheci há uns meses atrás veio a falecer. Sepultamento nesta segunda-feira. Trinta e poucos anos de existência. Preocupo-me com as causas. Amigos me respondem. Meningite. Reunimo-nos e fizemos uma prece. Adrielly, o primeiro transexual que conheci de perto. Chamavam-na "dama da cozinha". Disseram que preparava excelentes quitutes. Nunca deles provei. Pouco conversamos, mas tenho boas recordações. Discreta - o que nunca imaginei encontrar numa "trans" para ignominia minha -, elegante, temente a Deus e de poucas palavras. Um obliquoso antagonismo no estereótipo homicida que nos habita. Pra muitos juízos de plantão, uma imoral. "Perdida", no linguajar da religião e de seus adeptos tão cheios de coisa-alguma-pra-deus.
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Puxei uma folha qualquer na memória e comecei a rabiscar uma reflexão sobre o que seria imoral no sentir-pensar de nossos dias. Na volta, caminhando pelas ruas do Centro, preferi traduzir as palavras em idéias que não se calam diante de perguntas famintas. No silêncio, pus poesia como degelo nas tristezas. E fiz com que elas se tornassem mensagem pregadas num varal. Não que resolvesse expor minhas palavras, idéias ou, quem sabe, fragilidades masculinas. Não temo por isso. É que decidi interagir comigo mesmo. Publicamente. Tem vezes que penso que tudo se ergue tão transitório à razão. A vida. A idéia. A paixão. Quem chega e quem vai. Nós apenas conjugamos enquanto vivemos.
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O verbo existe de per si. "No princípio era o verbo", assevera a epifania no primeiro capitulo do Evangélio de João. Sabedoria antiga que ensina o que a vida traz: o verbo sempre esteve presente... Hoje sou eu quem não estou para muitas palavras, sejam verbos, sujeitos ou predicados.
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O homem? A mulher? O em-si? O pra-si? O fruto parido? O fruto proibido? A mão na púbis? O pé na bunda? A boca no falo? O descompasso? O lapso? A tortura? O menor salário? Os juros ou as taras? A mordaça ou o fio dental? A interjeição ou o cuspe? A provocação ou a desistência? A sedução ou a fuga covarde? A nudez ou a vergonha não castigada? O homicídio ou o suicídio? A morte em vida ou a vida sem sentido? O abuso ou a omissão? O tapa na cara ou o que se faz antes? E o que não se faz quando deveria tê-lo feito? O que é imoral? Com que olhos se vê o que é moral? Suspiro. Olho as horas. Observo o semáforo. Atento, atravesso a rua. Entre tanta gente que me esbarra não há nada que me espante...
Seguindo pela rua, telepaticamente, a voz e o sotaque de Clarice surgem como chuva de papel picado:
"O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo."
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Eu me agacho e cato minha resposta nos pedacinhos em branco que ainda escreverei...
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Fonte: Blog Farelos & Sílabas
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